O Último Café na Mesa do Mundo
09/04/2025
"Algumas casas não morrem— apenas esperam.
E quando voltamos, não é para recomeçar:
é para compreender o que ficou vivo mesmo na nossa ausência.”
Voltar para casa é como entrar numa história que ficou esperando ser contada. A chave gira, a porta range — e a casa respira. Não de alívio, mas de susto. Como quem há muito não ouvia passos. A casa ficou órfã da sua presença, mas não reclamou: adormeceu de pé, sustentada por paredes que aprenderam a ter paciência.
Você não foi embora. Foi levado. Pelo tempo, pelas urgências, pelos silêncios que engolem nossas vontades como a areia engole o rastro de um caminhante. Partiu como partem os rios — não por vontade própria, mas porque tudo o que é vivo precisa seguir.
Foi por isso que você foi. Não em busca de si, mas dos outros. Porque há quem nasça com o dom da travessia. Gente que não constrói porto, mas carrega ponte nos ombros. Levou a voz, não para se impor, mas para não calar. Levou o peito, não para bater, mas para abrigar. Levou o sonho, não para exibir, mas para semear.
E então, um dia, voltou. A casa te viu antes de você vê-la. E se comoveu. A porta, cansada, gemeu; as janelas, timidamente, abriram-se ao sol. Mas bastou pisar na cozinha para entender: havia um cheiro de fim. Um cheiro que não é de morte, mas de coisa esquecida demais para ainda ser viva. Lá, onde outrora fervia café que acordava vizinhos e saudades, havia agora um odor espesso — mistura de mofo, descuido e ausência.
A cozinha, ventre da casa, sabia das coisas. Sempre soube. E guardava aquele fedor como quem carrega luto em silêncio. O tempo, esse bicho lento e voraz, comeu o que havia de sagrado ali: a partilha, o pão, o afeto. Não era o fogão que falhava. Era a memória que se recusava a acender.
Você andou pelos cantos como quem procura restos de si. Paredes descascadas, móveis quietos, gavetas que já não sabiam o nome das coisas. Tudo esperava, tudo adoecia. E foi ali, entre a ferrugem e a poeira, que a verdade se ergueu: demorou demais.
Mas construir e aprender, nunca foi arte para gente descansada. Não é para os que apenas opinam, mas para os que sujam as mãos. Para quem tropeça e, mesmo assim, insiste. Para quem não teme parecer tolo por acreditar outra vez. Porque há quem seja feito de coragem como outros são feitos de osso.
E então, quando o tempo já não dava trégua, compreendeu: era chegada a hora de partir. A última. Não aquela que assusta, mas a que completa. Como o fim de um conto que, enfim, se deixa escrever.
A pedra final caiu nas mãos, e o gesto foi simples.
Não gritou. Não chorou.
Disse apenas: foi o bastante.
Se algo restar de mim, que seja essa lembrança breve:
o de quem tentou — com ternura, com tropeço, com teimosia.
O de quem soube voltar, mesmo sabendo que nada o esperava intacto.
O de quem fez do último café, sobre a mesa do mundo, um rito de despedida e gratidão.
Lá no fim, que não haja coroas nem discursos.
Apenas o cheiro tímido de café recém-passado —
e uma janela aberta para a eternidade.